
Uma das frases da Bíblia muito repetida e pouco explicada, é aquela que Jesus pronunciou por ocasião da sua unção em Betânia: “Pobres sempre tereis” Mc 14.7. Uma mulher tinha derramado um frasco de perfume na cabeça de Jesus. Custava trezentos denários, o equivalente ao salário de trezentos dias de trabalho. Um discípulo reclamou: “A troco de que esse desperdício? Poderia ser vendido por mais de trezentos denários e distribuídos ao pobres” Mc 14.5. Jesus respondeu: “ Pobres sempre tereis convosco e quando quiserdes, podeis lhes fazer o bem, mas a mim nem sempre tereis” Mc 14.7. Qual é o sentido desta frase? O que ela nos diz sobre o direito dos pobres?
A frase vem do livro do Deuteronômio, 15.11. Faz parte da Lei do ano sabático, v.1-11. O Projeto de Deus pede que na comunidade dos crentes haja participação de bens. Por isso “não deve haver pobres no meio de ti”, 15.4. Esta lei deve orientar o comportamento do povo de Deus. Na raiz da sua organização deve estar a preocupação constante: “No meio de nós não pode haver pobres” O povo de Deus, porém, não é o dono do mundo, não tem o controle das causas econômicas, sociais e políticas que geram a pobreza no mundo. Por isso, pobres sempre vão existir: “Pobres sempre tereis convosco”. Eles sempre vão aparecer na comunidade. Daí nasce a lei do Deuteronômio. “Nunca deixará de haver pobres na terra; é por isso eu te ordeno: abre a mão em favor do teu irmão, do teu humilde e do teu pobre em tua terra” Dt 15.11.
Esta lei tem o seguinte objetivo: no mundo de injustiça, Israel deve ser um sinal de Deus. No mundo sempre vão existir os pobres, mas na comunidade não pode haver pobres. Ela deve ser organizar de tal maneira que os pobres possam ser acolhidos e ser favorecidos pela partilha. A comunidade, a Igreja, deve ser a Aliança de Deus com os homens na luta contra a pobreza; deve ser uma amostra grátis da verdadeira fraternidade que Deus quer para todos. Só assim a comunidade se converte em Boa Nova para os pobres.
A reclamação do discípulo Judas (evidentemente o tesoureiro, Jo 12.5), aparentava amor aos pobres. Na realidade, era uma maneira de escapar de um dever mais importante. Em vez de lutar pela organização da comunidade para que combatesse as causas da pobreza e acolhesse os pobres em Nome de Deus, pretendia uma espécie de “campanha rápida” para arrecadar trezentos denários e distribuí-los entre os pobres. A resposta de Jesus procede da tradição antiga da lei. Não permite que tranqüilizemos a consciência com uma “campanha” que venha descaracterizar uma obrigação maior. A frase “pobres sempre os tereis convosco” lembra do dever primário da comunidade: “Em teu meio não haverá nenhum pobre” Dt 15.4. Os pobres têm direito à nossa luta por seu direitos e interesses.
Então como explicar aquele desperdício?
No início da paixão de Jesus, aparece a mulher que derrama um perfume fino de trezentos denário, Mc 14.3-9; Mt 26.6-13. No final da paixão aparece “um homem rico” Mt 27.57, que pede licença a Pilatos para enterrar Jesus num sepulcro novo, recém cavado na rocha, Mt 27.57-60; Mc 15.42-47. Ora, o profeta Isaías, ao falar do Messias sofredor, dizia: “Deram-lhe sepultura com os ímpios, o seu túmulo está com os ricos” Is 53.9. A insistência, por um lado, no perfume caro derramado com vistas ao sepultamento, Mc 14.8; Mt 26.12, e no sepulcro novo de um homem rico, e, por outro, na crucificação entre dois ladrões, Mc 15.27, Mt 27.38, mostra aos que têm fé nas Escrituras que Jesus é o Messias, o Servo Sofredor, que veio cumprir as promessas. Ele é a Boa Nova que vem ao encontro da esperança dos pobres.